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Crônica sobre comemorações

 

                                    

                                O que é comemorar?

          

 

Desde cedo ele viu problemas em comemorações. Até os cinco anos de idade, não sabia o que isso significava. A primeira fisgada aconteceu aos sete, quando ouviu a mãe falando que ele não tinha roupa para ir à festinha de um amiguinho da escola. Foram dias longos e de chamados insistentes, até que na data, lá estava, com a calça de suspensórios puídos e camisa encardida, com as alpercatas de pneu velho, feitas pelo avô, entre crianças arrumadinhas, engomadinhas, todas demonstrando uma alegria que nele se comprimia. Ficou o tempo todo se esgueirando, buscando anteparo por trás dos móveis, debaixo da mesa ou protegendo-se no costado silencioso dos adultos, com um imenso desejo de ser invisível.

A mesa decorada, o bolo colorido, os balões, os chapeuzinhos, tudo era muito ameaçador. Faltava graça espontânea e ele sofreu muito, tanto que, enquanto cantavam os parabéns, ele chorou timidamente e sentiu que o ar o abandonara. Foi se arrastando devagar, em direção da porta e correu para casa, como quem estava fugindo de algo desnecessário. Nos anos seguintes, algo parecido se deu, noutras festas demarcatórias das homenagens às mães, pais, crianças, natal e ano novo. Festa não era um lugar bom para brincar e sorrir – concluiu.

Aos dezoito, nuca tivera uma festa para si, um bolo para partir, uma roupa boa para vestir, um sapato para ornar os pés. Mas ria, brincava e se alegrava e alegrava a todos, todos os dias, a toda hora, sempre que sabia não precisar se revestir para os outros verem. A exposição festiva o deprimia. Daí que ele entendeu que comemorar é morar na festa de todos os dias e não ter um dia para passar por alguma festa.

Aos vinte anos tomou um porre no dia do aniversário, 18/12, uma semana depois, no Natal, pensou que a missa do galo é uma coisa boa que acontece muito tarde da noite e uma semana mais, se auto explicou que o ano novo é uma ilusão que os inventores dos calendários sobrevalorizaram, mas que não passa de uma ocorrência na qual as pessoas mentem dizendo que vão mudar tudo, quando na verdade não vão mudar nada.

Em todas as festas, ele fica meio que perdido, desorientado, quase alheado, porque não nota espontaneidade nas pessoas, raras exceções. Há quem discuta e brigue para não chamar determinada pessoa a sua festa e há quem discuta e brigue por não ter sido chamado às festas alheias. Há quem sobrevalorize festas e há que as frequente com fulgor tão falso que sua presença é mais que uma sombra, é uma mancha.

Ele não compreende nenhuma festa como celebração. Celebrar é se encontrar, se ajuntar e brincar sem planejamentos ou, se planejada, a celebração é autentica quando as pessoas se reúnem com a clareza infantil de quem mergulha numa piscina de bolinhas ou de quem cava a areia da praia para se deitar sobre a umidade que a espuma das ondas assentou.

Nunca lhe fizeram uma festa de surpresa ou planejada. Ele torceu sempre para que nunca fizessem. Que se fizessem fosse algo que as pessoas envolvidas, na surdina, vibrassem de modo encantado e encantador, de verdade. Ele uma vez sonhou que seus amigos fariam algo assim, mas apenas comunicavam que iriam fazer, desde que cada pessoa acrescentasse um detalhe real ao acontecimento. Ele sonhou que na sua festa, talvez a única, as pessoas estavam felizes por dentro em estar ali e não com o peso da obrigação de marcar presença. Quando acordou – o sonho ocorreu quando chegou aos 50 – tempo que achava não alcançar, ele pensou que bom mesmo é festejar sem ensaios, em vivo e em cores, quando a verdade dos sentimentos emerge para o agora, esplendendo o amor das gentes por todas as gentes indistintamente.

No conjunto das suas observações sobre festas há as mães que se desdobram para fazer um bolo, comprar uns balõezinhos e uma velinhas para comemorar o aniversário dos seus filhos carentes. Há as pessoas que reclamam por terem de ir a uma festa nas tardes de sábados livres que se tornam obrigações evitáveis. Há também quem acredita que festejar é inevitável. Tudo isso ele entende, mas continua sentindo no coração que comemorar é fazer a festa morar com a alegria na presença espontânea de todas as pessoas. Por isso se alegra tanto fora das festas e festeja tão pouco, as suas próprias datas ditas importantes.   

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Algumas notícias sobre aquela amiga

A misteriosa fuga de uma amiga

Ela estava bem, com suas idiossincrasias em dia, a dosagem de neuroses na medida, suas implicâncias ativadas com determinados assuntos e pessoas, aquela chatice repetitiva não recuava e ela tocava a vida solitária, na sua casa apinhada de objetos de estimação, alguns que ela não tocava ou via há anos. Ela estava bem, exceto por aquela fadiga existencial que chega quando alguém percebe que pouca coisa tem graça no mundo. Eu sempre digo que a graça da vida é a gente que cria e se a criatividade e boa vontade perante a vida não são estimuladas, os sentidos se esvaem antes dos horizontes ideais da existência se revelarem.

Contudo, ela estava bem, apesar da solidão e dos embates pouco afetivos em família. Era uma solidão de gente em volta, mas seus objetos de estimação, muitos, gradados naquela casa bem arrumada, lhe eram companhias que, apesar de perto, muitos, há muito tempo, não eram tocados, usados, vistos. Mas, ela os sabia ali, sob sua jurisdição de apego e isso parecia que bastava.

Numa tarde de junho, antes do inverno, uma tarde comum de um dia comum, ela se lembrou de algo que estava no armário mais alto da cozinha, mal abriu a escada e subiu para verificar. A escada abriu inesperadamente e ela caiu, quebrando a perna, ali entre a tíbia e o joelho. Foi parar em hospital público, em Sorocaba, onde passou por uma cirurgia, tudo indica, mal elaborada, o que lhe rendeu uma segunda operação e desta vez com o agravamento de pegar uma estranha e indomável bactéria. De repente, uma queda revelou a insignificância de uma pessoa para o Estado brasileiro e a significância do zelo que muitos de nós não temos no dia a dia.

Na família mesmo, ela sofreu revezes, desde os amorosos, aos financeiros, até a indiferença. Saber o que e por que não vem ao caso. O fato é que a gente está a um passo da não humanidade. Ela teve alta sem está restabelecida. Foi ser cuidada em casa pela filha e pela nora, mas com a bactéria viva no seu organismo e a cirurgia aberta, pingando simbolicamente a putrefação do sistema de saúde do Brasil. Três meses depois, os médicos propuseram que voltasse ao hospital para novos exames.

Então, eu e alguns amigos, com permissão dos filhos já a havíamos alocado em uma casa de reabilitação, onde ficou uma dezena de dias, porque, na consulta, desta vez em hospital de São Paulo, os médicos preferiram interna-la para novos procedimentos, porque a bactéria não houvera recuado, apesar de antibióticos fortíssimos aplicados. Ela fez uma terceira cirurgia de raspagem, estava tudo bem. Em seguida, na quarta feira da semana passada fez a quarta e estava tudo bem. Eu alisei os seus cabelos gris, emaranhados e lhe disse que estaria sempre com ela, em qualquer circunstância. Ela me olhou fundamente e chorou. Eu lhe beijei a testa com a atenção de um filho único, embora sendo apenas um amigo.

Na sexta feira passada, a filha a visitou e estava tudo bem. Na segunda feira, recebi um telefonema da filha me dizendo que ela surtara, tentara fugir e que os médicos a sedaram a amarraram. O que houve? Ninguém sabe. Ela simplesmente, na madrugada de segunda feira quis fugir. Para onde? Jamais vamos saber. Como alguém, com a perna recém-operada, pode desejar fugir? Que simbologia é essa? Eu penso que os horizontes que dão sentido à vida estejam entranhados em nós e que em dado momento estes horizontes forçam passagem e trincam nossos desejos e a gente precisa fazer qualquer coisa que nos torne visíveis ao fulgor de estar vivo. Ela tentou e foi contida, sedada, amarrada, impedida de fazer por si o que talvez nunca tenha ousado.

Na segunda feira mesmo foi diagnosticada com demência e noticiada sobre a bactéria que entrara na corrente sanguínea e em estado grave foi transferida para a UTI. Ontem estive lá, visitando-a. Eu e meu companheiro, o Ricco. Ao chegarmos, ela disse: “tirem os meus óculos”. Os óculos imaginários pareceram nítidos, mas não estavam lá. O Ricco os retirou como se de fato estivessem ali. Ela disse: “não me engane, Ricco, você não tirou meus óculos”. Ricco passou as mãos na sua testa, nos seus cabelos e repetiu que retirara os óculos e ela aceitou como verdade, algo que era uma mentira, mas que na verdade era e teria de ser uma verdade para ela. No diálogo percebemos que ela nos reconhecera e isso era bom.

“Oh, Zé’, ela me olhou dizendo “eu morri, me mataram com uma injeção, eu morri e fui lá, estava todo mundo comigo, vocês estavam lá, a Beth estava lá, minha filha estava lá e mesmo morta, você sabe que tentaram me matar de novo?” . Eu dei crédito a ela, eu perguntei o que ela viu. “era uma festa, o lugar era lindo e o anjo, o anjo estava comigo, estava comigo o tempo todo, então eu disse que não queria morrer e ele me trouxe de volta, dizendo que eu não estava só”.

Eu retirei os olhos dela, comovido. Ricco olhou a perna, estava enfaixada, Ricco limpou os olhos dela, alisou seus cabelos e fomos convidados a encerrar a visita pela enfermeira. Ela disse: ‘não, eles não devem ir agora, chegaram agora, vieram de longe, eles tem de ficar um pouco mais”. A enfermeira piscou e nos convidou delicadamente a sair, o que fizemos prometendo retornar hoje. No geral, portanto, o que houve de verdade com minha amiga é que ela adquiriru uma doença que o sistema de saúde do Brasil incrustou nela. É a bactéria que o hospital deixou entrar nela que fez de uma perna quebrada, cuja cura é relativamente fácil, um estado grave de uma enfermidade que ela não teria, caso os procedimentos médicos fossem ideais, desde o primeiro momento. Lamentável.

Creio que não haja demência e que o estado não seja para óbito. Ela está confusa, sob o efeito intenso de uma medicação pesada, inclusive, sedativos e que a bactéria esteja causando alguma anomalia em todo o organismo. De certa forma, é como se ela estivesse fugindo para um mundo que está nela mesma e ali parece que é mais calmo. Ela está sentindo menos dor, mas está se lembrando de muita coisa, tanto coisas recentes, quanto coisas passadas, o que indica que ela está ali, a minha amiga está ali, com a liberdade de fugir para onde é possível dentro dela mesma. E eu e o Ricco estávamos lá e estamos aqui para o que der e vier, com relação a ela. No que pudermos a apoiaremos nas fugas que ela fizer, desde que isso a faça se sentir minimamente bem. Por enquanto, é isso. Demais, o tempo vai nos revelar.

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