Algumas notícias sobre aquela amiga

A misteriosa fuga de uma amiga

Ela estava bem, com suas idiossincrasias em dia, a dosagem de neuroses na medida, suas implicâncias ativadas com determinados assuntos e pessoas, aquela chatice repetitiva não recuava e ela tocava a vida solitária, na sua casa apinhada de objetos de estimação, alguns que ela não tocava ou via há anos. Ela estava bem, exceto por aquela fadiga existencial que chega quando alguém percebe que pouca coisa tem graça no mundo. Eu sempre digo que a graça da vida é a gente que cria e se a criatividade e boa vontade perante a vida não são estimuladas, os sentidos se esvaem antes dos horizontes ideais da existência se revelarem.

Contudo, ela estava bem, apesar da solidão e dos embates pouco afetivos em família. Era uma solidão de gente em volta, mas seus objetos de estimação, muitos, gradados naquela casa bem arrumada, lhe eram companhias que, apesar de perto, muitos, há muito tempo, não eram tocados, usados, vistos. Mas, ela os sabia ali, sob sua jurisdição de apego e isso parecia que bastava.

Numa tarde de junho, antes do inverno, uma tarde comum de um dia comum, ela se lembrou de algo que estava no armário mais alto da cozinha, mal abriu a escada e subiu para verificar. A escada abriu inesperadamente e ela caiu, quebrando a perna, ali entre a tíbia e o joelho. Foi parar em hospital público, em Sorocaba, onde passou por uma cirurgia, tudo indica, mal elaborada, o que lhe rendeu uma segunda operação e desta vez com o agravamento de pegar uma estranha e indomável bactéria. De repente, uma queda revelou a insignificância de uma pessoa para o Estado brasileiro e a significância do zelo que muitos de nós não temos no dia a dia.

Na família mesmo, ela sofreu revezes, desde os amorosos, aos financeiros, até a indiferença. Saber o que e por que não vem ao caso. O fato é que a gente está a um passo da não humanidade. Ela teve alta sem está restabelecida. Foi ser cuidada em casa pela filha e pela nora, mas com a bactéria viva no seu organismo e a cirurgia aberta, pingando simbolicamente a putrefação do sistema de saúde do Brasil. Três meses depois, os médicos propuseram que voltasse ao hospital para novos exames.

Então, eu e alguns amigos, com permissão dos filhos já a havíamos alocado em uma casa de reabilitação, onde ficou uma dezena de dias, porque, na consulta, desta vez em hospital de São Paulo, os médicos preferiram interna-la para novos procedimentos, porque a bactéria não houvera recuado, apesar de antibióticos fortíssimos aplicados. Ela fez uma terceira cirurgia de raspagem, estava tudo bem. Em seguida, na quarta feira da semana passada fez a quarta e estava tudo bem. Eu alisei os seus cabelos gris, emaranhados e lhe disse que estaria sempre com ela, em qualquer circunstância. Ela me olhou fundamente e chorou. Eu lhe beijei a testa com a atenção de um filho único, embora sendo apenas um amigo.

Na sexta feira passada, a filha a visitou e estava tudo bem. Na segunda feira, recebi um telefonema da filha me dizendo que ela surtara, tentara fugir e que os médicos a sedaram a amarraram. O que houve? Ninguém sabe. Ela simplesmente, na madrugada de segunda feira quis fugir. Para onde? Jamais vamos saber. Como alguém, com a perna recém-operada, pode desejar fugir? Que simbologia é essa? Eu penso que os horizontes que dão sentido à vida estejam entranhados em nós e que em dado momento estes horizontes forçam passagem e trincam nossos desejos e a gente precisa fazer qualquer coisa que nos torne visíveis ao fulgor de estar vivo. Ela tentou e foi contida, sedada, amarrada, impedida de fazer por si o que talvez nunca tenha ousado.

Na segunda feira mesmo foi diagnosticada com demência e noticiada sobre a bactéria que entrara na corrente sanguínea e em estado grave foi transferida para a UTI. Ontem estive lá, visitando-a. Eu e meu companheiro, o Ricco. Ao chegarmos, ela disse: “tirem os meus óculos”. Os óculos imaginários pareceram nítidos, mas não estavam lá. O Ricco os retirou como se de fato estivessem ali. Ela disse: “não me engane, Ricco, você não tirou meus óculos”. Ricco passou as mãos na sua testa, nos seus cabelos e repetiu que retirara os óculos e ela aceitou como verdade, algo que era uma mentira, mas que na verdade era e teria de ser uma verdade para ela. No diálogo percebemos que ela nos reconhecera e isso era bom.

“Oh, Zé’, ela me olhou dizendo “eu morri, me mataram com uma injeção, eu morri e fui lá, estava todo mundo comigo, vocês estavam lá, a Beth estava lá, minha filha estava lá e mesmo morta, você sabe que tentaram me matar de novo?” . Eu dei crédito a ela, eu perguntei o que ela viu. “era uma festa, o lugar era lindo e o anjo, o anjo estava comigo, estava comigo o tempo todo, então eu disse que não queria morrer e ele me trouxe de volta, dizendo que eu não estava só”.

Eu retirei os olhos dela, comovido. Ricco olhou a perna, estava enfaixada, Ricco limpou os olhos dela, alisou seus cabelos e fomos convidados a encerrar a visita pela enfermeira. Ela disse: ‘não, eles não devem ir agora, chegaram agora, vieram de longe, eles tem de ficar um pouco mais”. A enfermeira piscou e nos convidou delicadamente a sair, o que fizemos prometendo retornar hoje. No geral, portanto, o que houve de verdade com minha amiga é que ela adquiriru uma doença que o sistema de saúde do Brasil incrustou nela. É a bactéria que o hospital deixou entrar nela que fez de uma perna quebrada, cuja cura é relativamente fácil, um estado grave de uma enfermidade que ela não teria, caso os procedimentos médicos fossem ideais, desde o primeiro momento. Lamentável.

Creio que não haja demência e que o estado não seja para óbito. Ela está confusa, sob o efeito intenso de uma medicação pesada, inclusive, sedativos e que a bactéria esteja causando alguma anomalia em todo o organismo. De certa forma, é como se ela estivesse fugindo para um mundo que está nela mesma e ali parece que é mais calmo. Ela está sentindo menos dor, mas está se lembrando de muita coisa, tanto coisas recentes, quanto coisas passadas, o que indica que ela está ali, a minha amiga está ali, com a liberdade de fugir para onde é possível dentro dela mesma. E eu e o Ricco estávamos lá e estamos aqui para o que der e vier, com relação a ela. No que pudermos a apoiaremos nas fugas que ela fizer, desde que isso a faça se sentir minimamente bem. Por enquanto, é isso. Demais, o tempo vai nos revelar.