um sonho de outono

um sonho que não acabava. eu estava perdido. um estrangeiro em país de língua indecifrável. saíra do hotel e andara pela rua sem anotar referências. o amado tinha ido fazer uns testes de intercâmbio cultural, eu estava só, observando as pessoas falarem o que não entendia. eu ia a um show de um artista desconhecido. o lugar estava cheio de gente estranha vestindo vermelho e amarelo. eles se agitavam. o apresentador do show tinha rosto igual ao artista que se apresentava. eu fiquei assustado e surpreso. a música era ruim. a bateria era tocada com martelos de bater carne, e os pratos da bateria eram, na verdade, panelas rasas e tampas. quem tocava aparentava uma pequenez de espírito incontornável. os demais xingavam. num instante, o palco ficou cheio de homens mal encarados, vestidos de marrom, da cor do barro do Rio Doce, gente que abanava dólares contra o vento. por trás deles tinha uma mulher alquebrada, triste e dura, ao mesmo tempo. não tive dó, apenas receio de que aqueles homens eram bem piores que ela, naquele quadro. ela não tinha dólares nas mãos, mas não tinha um semblante bom. ninguém falava a minha língua, mas dava para entender que falavam do meu país. eles diziam que estavam segurando a grana, porque logo logo renderia mais dividendos. por trás da mulher tinha um monstrengo de sobrancelhas finas e altas, parecia um mordomo de filme de terror, como ouvira certa vez de alguém. ele empurrava a mulher que insistia em permanecer onde estava. em dado momento, os homens mal encarados começaram a ajudar o monstrengo e empurrar a mulher, alguns populares de amarelo a cutucavam com pedaços de barras de ferro retiradas das esquadrias. o pessoal de vermelho, em minoria, apanhava e também revidava, era uma genete que misturava uma razão maior com outras razões mesquinhas. outros homens, na parte de cima do local, numa espécie de camarotes riam bastante, entre eles alguns usavam uma espécie de beca ou seria toga e soltavam risinhos cínicos. eu saí para tomar um ar, mas as ruas estavam cheias de pessoas iguais, a bagunça era maior. esquivei-me e queria voltar para o hotel, mas não sabia o nome do hotel, o nome da rua, parecia que eu estava anestesiado, mas sentia uma amargura muito grande. zanzei, andei em ziguezague numa rua paralela, parecia uma favela. os meninos descalços me pediam dinheiro gesticulando e eu passando, já em lágrimas. uma mulher me perguntou em português: está perdido? eu suspirei aliviado e disse - também estou atônito. perguntou para onde queria ir, disse-lhe que não sabia de onde tinha vindo. ela tinha um maço de cédulas de votos nas mãos e os conferia. eu perguntei o que eram os papéis. ela disse que não importava, parece que não valem nada e indagou se eu queria voltar para o Brasil e com uma dor lancinante no peito respondi que não sabia, eu não sabia, porque as pessoas ali estavam meio enfurecidas umas com as outras e que todos estavam muito enganados. ela foi me levando sem dizer para onde íamos. de repente vi o amado de pé, vestindo a mesma camisa que eu vestia quando o conheci. saí correndo para seus braços e quase chegando caí. ele veio ao meu encontro e perguntou o que foi. eu respondi, por um instante eu achei que nada valia a pena, mas o amor, querido, o amor ainda está nos seus olhos, direcionados para mim. Quando acordei, veio-me o significado. quando sonhamos que estamos perdidos em país estrangeiro é porque o nosso está sendo devastado por péssimas demonstrações de desprezo aos seus valores libertários. então, vendo o meu menino dormindo, ao meu lado, disse baixinho: ainda bem que não estou de tudo vazio. quem sabe ele pode recomeçar.