Quadros de família

 
Nunca duvidei de que pertencesse a uma família especialmente diferente e abençoada em muitos aspectos. Aliás, abençoados é como as pessoas mais amadas chamam a mim e ao meu companheiro de jornada. Por aqui já posso dizer que família é mais do que sangue  e tradição. Família é diversidade que se sacraliza quanto mais se diferencia e se iguala em disponibilidades para acordos.
 
Papai tem 85 anos, está com Alzheimer e com alguns órgãos cronicamente desgastados. E sempre contrariou muitos dos seus, não por maldade, mas por motivos que aqui não vem ao caso. Sua doença serve para comprovar que uma família pode supreender se não se magoa e se aprende a perdoar. Estou longe de muitos dessa família há uns quarenta anos, mas sempre mantive os laços afetivos bem apertados. 
 
Mamãe enquanto esteve por aqui procurou entender a todos dissipando opiniões, revanchimsos e maus procedimentos. Mamãe nos ensinou que a união espontânea e renovada propositalmente fortalece elos. Talvez por isso nós os filhos somos propensos a seguir intuitivamente seus exemplos notórios. Mas na família do papai tem gente de tanto valor que não dá para dizer tudo em um artigo.
 
É evidente que há exceções execráveis, mas nós aprendemos com vovô que a decência se imita e a tacanhez se ignora. Filhos que não contribuem com os pais, ao menos com o respeito e com ajudas mínimas, nos ensinam que são apenas equivocados. O avô Sebastião dizia que um bom filho será um bom homem e uma boa filha será uma boa mulher para todos e para o mundo. Um mau filho e uma má filha nunca serão sequer homem e mulher de fato.
 
Concordo e quem dos meus sobrinhos e sobrinhas leia isso aprenda e pratique essa verdade. A avó Zeca dizia que uma família não se faz com elos de sangue, mas com alianças de complementaridades para o bem estar. Sábia, minha avó materna. Por fim, a avó Xica afirmava que a família era um quadro valioso que merecia todos os retoques necessários com a máxima atenção e zelo.
 
Se parasse por aqui já justificaria porque sou chamado de o abençoado, talvez porque encontrei o Ricco que traz para mim essa certeza, essa aliança de bênçãos. Temos casos de quem entrou na família que são reforços valiosos, como compadre José Bernardo, cunhado do papai que diz: "Eu não tenho sonho – eu tenho vida. Eu trabalho no que gosto. Faço sapatos. Tenho 72 anos e trabalho em pé durante 9 horas por dia. À noite venho em pé no ônibus e quando me oferecem o lugar, digo alegre e respeitosamente que não precisa. Vou assistir tevê sentado por algumas horas  e dormir deitado por outras tantas horas e o corpo se beneficia dessa alternância. Não sou feliz. Sou pleno e isso não depende de ninguém. É claro que tenho problemas, mas os resolvo sem apertar demais os parafusos da vida que possui roscas exatas, assim como a medida das taxas ou a consistência da cola que une as partes dos sapatos que faço".
É claro que pertenço a uma família de pessoas que deveriam ter mais valor do que a sociedade lhe dá, mas somos uma minoria e somos pouco creditados, mas a mim, isso fundamenta a fortaleza que me soergue. 
Um outro, o compadre Manoel Nunes diz que não pode ficar parado, porque precisa honrar o pouco que seu pai lhe ensinou, que é retirar da terra o sustento. Todos os anos, chova ou faça sol, enquanto muitos dependem do assistencialismo duvidoso do mundo, ele colhe abóboras, melancia, melões, pinhas, milho, feijão, fava e hortaliças do quintal da casa que pertenceu ao meu avô paterno e que agora me pertence. Sinto grande orgulho desse cara e aprendo muito com ele. "Carlinho, meu compadre, família é quem me considera. Se você precisar repetir uma verdade para alguém é porque ela não quer saber do senhor, afaste-se. tem muita gente que não merece ouvir a sua voz. O senhor é mais novo do que eu, uns trinta anos e me ensinou muito mais do que meu pai".
 
Eu fico encabulado e saio meio triste, porque é verdade que tenho sido abandonado exatamente porque digo umas verdades que poderiam mudar o mundo da gente para melhor. Mas fazer o quê? Fica martelando em mim: família é quem me considera. E alegro-me quando chego em Riachão e vejo que o que disse há quarenta anos ainda faz de mim uma pessoa digna de respeito e de atenção de dezenas de pessoas mais velhas do que eu. Sinto que mereço me auto chamar de oráculo.
 
Já na nova geração uma das primas chamou a família de tia Rita para um Natal em sua casa. E tia Rita levou um menininho de cor negra. Armaram no quintal uma piscina de plástico e a molecada da família entrou para o banho. O menininho negro ficou apenas olhando. MInha prima foi perguntar por que ela não se juntava ao grupo e o menino perguntou: mas eu posso? Minha prima percebeu que era por causa da cor e o puxou mais que depressa para a piscina. Quando entrou em casa, chorou destampadamente, porque não sabia como retirar do menino a tinta nojosa do preconceito que impregnaram nele. No que tia Rita, mãe dela, disse: a única diferença entre esse menino e nós é a cor e a dele por ter sido razão de sofrimento já é mais nobre que a nossa.

 

Não por menos essa tia Rita de 75 anos trata a mim e ao Ricco como um casal. E além do mais e para completar, minha madrinha Idalice, aquela que me batizou no catolicismo, pegou a minha mão, pôs sobre a mão de Ricco e as apertou, como a dizer o indizível que me alegrou e aumentou em mim a grande admiração que sinto por ela. Já a Madrinha NIla, nos seus 83 anos me disse: "Carlinho, esse rapaz (apontando para o Ricco) é a melhor pessoa do mundo para acompanhar você, porque você é a pessoa mais merecedora de amor que conheci na minha vida. Pode ser que não me case legalmente com Ricco, mas algo em nós já confirma que estamos casados pelo poder da dignidade reconhecida em nós por pessoas valiosas como estas que citei. 

 

Sentado olhando papai respirando e gemendo, me recordo de quando ele falou ao meu irmão caçula que "um homem não morre quando perde as funções, mas quando percebe que não se levanta mais". Eu fiquei ali estático, sabendo que ele já não alcança algumas partes de seu corpo e o senti morto, mas muito vivo no que sou. levantei-me e o beijei demoradamente, agradecendo-o por ter me dado uma família tão digna e tão abençoada. A gente não se preocupa com a morte física, a gente não procura curas miraculosas, não faz promessas e não se desespera com a morte. A gente apenas sabe que a vida é do tamanho de nossa dignidade e isso é algo que não morre.