Marielle, Direitos Humanos e a estupidez opinativa

Pouco se lê menos se sabe de verdade e muito se diz sem base lógica racional. O caso Mirella limpou a pauta das discussões nas redes sociais, porque evidenciou que bastante gente fala do que não entende, com a propriedade de um tolo inveterado. O melhor é não responder aos comentários e identificar o opinante como um ser que merece ser contemplado pelo Direito Humano de poder expelir asneiras, em nome da liberdade de expressão irrevogável.

Há uma massa crítica amorfa que argumenta sempre, a partir do meio da história, não se importando com a origem dos fatos e com a perspectiva malévola dos seus comentários. O meio não justifica os começos e é insuficiente para resolver dilemas do presente e seus desdobramentos futuros.

No caso dos Direitos Humanos, todo cidadão planetário teria de saber História Geral e compreender que durante muito tempo pessoas foram tratadas como bicho, foram negociadas como mercadoria, sofreram torturas inadmissíveis e tiveram seus direitos de ser desconsiderados, tendo suas vidas desvalorizadas profundamente por outras pessoas que julgavam superiores. A revolução mais esperada é a que disponibilize espontaneamente o planeta para todos e não somente para alguns.

Negros, mulheres, pobres e pessoas de crenças e etnias díspares, nos diversos recantos do mundo antigo e atual, foram e são frequentemente tidos como sub-raça, agora acompanhados dos diversos tipos de refugiados e daqueles que ousam expressar sexualidade variante daquela defendida pelos conservadores, estes que ignoram o Direito inalienável do outro ser como é, algo que deveria ser indiscutível por parte de todos os outros.

No século XIX, os iluministas lançaram a Declaração dos Direitos Humanos não para defender bandidos (lugar comum deplorável usado por muita gente), mas para garantir que pessoas não fossem submetidas à gana vingativa e à maldade sistemática dos mais poderosos diante delas.

Uma das prerrogativas dos Direitos Humanos é exatamente saber como se devem tratar os delinquentes, os assassinos, os ladrões e criminosos em geral, vítimas iniciais do sistema social e algozes no desdobramento da vida, lembrando sempre que no arredor de cada um destes indivíduos há familiares que são do bem e que sofrem consequências inevitáveis. Saber o que fazer com estas criaturas desviadas do bem, é muito mais um cuidado para que o mínimo possível de seres humanos sofra do que uma proteção para que eles cometam crimes e fiquem “de boa”, como diz o senso comum. Noutra frente há as vítimas dos bandidos fabricados e suas famílias que são vítimas também do efeito da ciminalidade, cuja causa está na forma de o Estado receber e encaminhar seus cidadãos às frentes de competitividades justas. 

A forma mais fácil de saber como reagir diante de algo assim é imaginar que o delinquente seja seu irmão, seu pai, sua mãe, seu filho ou seu melhor amigo. Decerto que você quereria vê-lo pagando por sua culpa, mas não se conformaria se a força militar, vingadores e outros poderes do Estado o submetesse a tratamentos desumanos. É neste limbo que as opiniões são cruéis, parciais e obtusas. Você pode pensar que os bandidos devem ter o que merecem, mas o que é mesmo que um bandido merece, quando não se sabe como ele chegou à condição de bandido?

É preciso saber que tipo de sociedade você quer, se uma sociedade justa e equilibrada ou se uma sociedade vingativa. Juntando isso ao fato de que todas as pessoas, com algumas exceções, são religiosas, professam o perdão e que prezam a paz. Seja pessoal ou individual. Pense nos seguintes dilemas:

Se sua vontade é que os bandidos paguem por seus crimes na mesma moeda, então precisa saber se a pena de morte é ideal e se colocar o poder vingativo nas mãos do Estado é algo confiável. Você confia no aparato policial, judiciário e político? Você quereria que um ser próximo a você fosse julgado e condenado por setores não confiáveis? Então a sua luta tem de ser para melhorar o Estado.

Se sua vontade é ver os bandidos apodrecendo nas celas imundas da cadeia, então se pergunte se as cadeias são lugares para recuperar os presos ou se são somente depósitos de párias.

Se você considera que todos os bandidos são iguais, então, precisa se perguntar para que o sistema prisional serve. Se os bandidos ricos são iguais aos bandidos pobres.

Se não é para recuperar, então deve ser destinado a ser um tipo de túmulo antecipado, onde o preso possa esperar sofrendo pelo crime até o momento da morte.

Se não é isso, então deve ser um tipo de faculdade, onde as modalidades de crimes se multiplicam e atingem a todos, tornando a maioria dos presos mais perigosos do que são. Se é para recuperar, sendo o crime um efeito gedo pela causa do Estado, então os presídio têm de funcionar como uma nova tentativa do Estado reconquistar alguém socialmente. Essa visão é suficiente para você reavaliar suas críticas.

Ficando apenas na esfera dos crimes, veja que é preciso também ter ideia da origem maior da bandidagem, porque uma sociedade saudável cuida da base essencial.

No cerne do liberalismo está subtendido que uma sociedade digna e dignificante recebe seus bebês para viverem em ambientes bem preparados com hospitais bem estruturados, escolas bem equipadas com bons professores e ferramentas de ensino ideais, com sistema de eletricidade, água e esgoto interligando todas as regiões e setores, com segurança preventiva e educativa e não violenta, com meios e condições de desenvolver cada pessoa, levando-a a adquirir competências para competir de igual para igual, quando precisar ganhar a sua própria sobrevivência e a sua evolução como cidadão.

Se o Estado faz isso está zelando pelos direitos humanos, enquanto o pequeno ser ainda é uma folha em branco. Depois de ofertar estas condições, se a pessoa se desviar, somente assim deveria ser considerado um bandido inveterado. Mas se o Estado rouba das pessoas esses Direitos Humanos Universais, na origem do nascimento, então qualquer coisa que se diga de um bandido abre grande brecha que pode chegar à injustiça e ou à crueldade pura e simples, porque o principal bandido da História é o Estado.

Bandido inveterado, portanto, é toda pessoa que tendo tido todas as condições de formação e desenvolvimento não trilhou o bem. Nessa categoria estão todos os bandidos de colarinho branco, incluindo políticos, grandes empresários sonegadores, banqueiros e outros que se aproveitam da precariedade do funcionamento do Estado para miserar ainda mais as classes que não tiveram chance alguma de se tornarem competentes para buscar o seu lugar sob o guarda chuva social.

Existem alimentações e realimentações da bandidagem comum feita por bandidos especializados que ocupam o topo da pirâmide social e é contra este que se tem de focalizar toda a sua ira e preconceito e comentários nojosos. Contra os bandidos comuns você deve concluir se o melhor é condená-los à tortura e à morte (seja por quais meios) ou se é mais justo lutar por um sistema social que diminua sua proliferação e um sistema prisional que mais os recupere do que os vulnere a novos crimes. Como vê, o problema é complexo, não é tão simples como dizer que bandido bom é bandido morto. Nesse limbo é que Marielle atuava e as pessoas de má índole e de má formação não a compreendem. A luta mais fantástica e indispensável é para transformar o Estado em um aparato funcional justo e igualitário, porque tudo de ruim que você aponta é resultante do mau funcionamento do Estado.

Antes de julgar alguém por qualquer crime é extremamente importante saber que um criminoso não nasce criminoso, ele se torna e as circunstâncias são tão variáveis que ficar apenas com a ocorrência mediana, o que ocorre no agora é, no mínimo, uma forma estreita e perversa de diminuir a gravidade do tema. Muito mais grave do que a ocorrência de um crime hediondo é o a sistematização hedionda da funcionalidade do Estado que não se luta para mudar, seja por ideologias, seja porque simplesmente não se sabe que a usina de criminosos está no topo e não na base da sociedade.

Por essa razão é que pessoas como Marielle são assassinadas. São algumas centenas de vozes caladas por um tipo de elite que não quer ser incomodada na sua criminalidade milenar. Não se trata de mimimi de esquerdistas. Pode até haver algum excesso de ruído desnecessário por parte da Esquerda, mas o assunto é alarmante e simplesmente a população tem de se indignar, de denunciar, de se revoltar, de exigir mudanças. Quem fica na outra parte do discurso, sobretudo, é gente que não sabe em que país vive e não faz ideia dos riscos que pessoas comuns correm. É de uma desumanidade singular. Note que os Direitos Humanos não são uma questão ideológica de Esquerdistas, mas uma janela para que toda a humanidade contemple os horizontes dos mais frágeis e tente mudar estes horizontes para algo digno e dignificante.

Por fim, o preconceito contra negros, pobres, mulheres e gente que ocupa o espectro dos diferentes gêneros, este tipo de discriminação é o que há de mais abjeto e também o que mais viola os direitos humanos, porque sedimenta ódios e desigualdades de condições perante a sociedade. Restringir a liberdade de alguém ser como se sente e como realmente é, é uma modalidade de crime que chamam de assédio moral, mas eu chamo de crueldade descabida, pois que, cada um sabe do que necessita e o que espera para viver bem cada dia. Emitir opiniões discriminadoras e julgar as pessoas por serem do jeito que as forças invisíveis impulsionaram-nas até o agora, é uma forma abusiva de conviver.  Quando se comentam ou se defendam determinadas ideias preconceituosas e pejorativas estão-se cometendo crimes passíveis de prisão, o mesmo que ocasionar motivos para serem incluídos na ror de bandidos. E aí, na categoria de bandido, ainda que como um criminoso classificado por outro tipo de violência (a violência contra a dignidade alheia), como é que deve ser tratado: com a inclemência, a morte ou os maus tratos do cativeiro ou como alguém que precisa aprender com o erro?

É este o dilema. Quem se habilita a mudar de ideia?