Mandela, o ícone devorado

Mandela, o ícone devorado.

 

O mundo assiste a mais um espetáculo desnecessário, vazio de significado e quase patético para não dizer ridículo: o festival disfarçado de cerimônia para o sepultamento de Mandela.

Primeiramente todos os homens públicos que lá estão desfilando, representando suas nações são modelos deprimentes de um funcionamento político terrível e que requer redirecionamento, seja para aperfeiçoar a Democracia, seja para recompor um tipo de governo, em que a corrupção chegue a um grau minimamente aceitável. Vá a cada um dos países que eles representam e verá que o oráculo não está sendo injusto.

Segundo, Mandela não é imitado em nada, sequer pela sua família que há anos vive entre acusações, escândalos e atitudes meramente competitivas pela herança daquele que só tem destaque histórico, porque os homens anteriores a ele cometeram graves crimes contra a humanidade, usando a Política para segregar, perseguir e desproteger pessoas, pelo fato natural de serem de outra cor e ou de outra classe social e ou de outra ideologia. O elogio ao mito sem a correspondente imitação de seus exemplo é a pior das hipocrisias, além de mascarar o desvirtuamento da Política como importante instrumento de sociabilização ideal.

Convenhamos que desde o Iluminismo uma luta como a de Mandela era completamente desnecessária, caso a humanidade seguisse o rito das mudanças espontaneamente, mas a Política é de fato a arte de contrariar a lógica dos princípios, sejam humanitários ou ideológicos. É muito jogo de cena para poucos resultados práticos e permanentes. Os brancos europeus invadiram, saquearam, usurparam, roubaram com o nome de Colonização, mas na verdade, já estavam fazendo da Política Internacional um ramo comercial, um negócio que, além de subjugar a soberania alheia, diminui as oportunidades de igualdades sociais gerais, batendo horrivelmente no desonroso trato com os indivíduos, subtraindo destes oportunidades de vida ampla e plena. Depois querem que não haja violência. 

É óbvio que o poder político corrompido século a século, com o aval criminoso dos grandes grupos religiosos, é responsável pela derrocada do bem geral e isso, salvo algum lampejo sobrenatural inimaginável, é irreversível. Precisamos urgentemente de vários Mandelas, mas não para acabar um regime de segragação racial, mas para acabar com o regime absolutista da segregação da dignidade comum a todos e que para ser conquistada encontra razões legalizadas pelo poder farsante, ainda que garantido nas urnas. Não é porque o Estado constitui os poderes e as leis que a legalidade seja justa e leal. Não existe justiça plena, o que confirma o regime de segregação, nos diversos níveis da sociedade. Somos governados, legislados e guinados por mecanismos grotescos, em que as negociatas prevalecem sobre as ideias de decência e de respeito a espécie. não existe exceção á essa regra malévola.

Melhor para Mandela que tivesse morrido logo depois da sua saída da presidência, porque de quando saiu até agora, muito de suas bandeiras foram desconsideradas, até mesmo entre as pessoas mais próximas. Seu partido é um arremedo do seu pensamento e seu povo ainda vive entre a resultante da luta do mito e a catástrofe prática de uma separação preconceituosa, quase impossivel de reverter. 

Tolice da opinião pública mundial que não lê as entrelinhas e se comove com a enganação midiática e com comentários tendenciosos de articulistas que servem ao sistema escabroso de exploração. A África do Sul vive uma espécie de oquidão política e social, tendo ainda como única base de mudança o fato de os negros terem ganhado voz, mas uma voz rouca e folclórica que não impede o roubo, a corrupção e o desrespeito generalizado. 

O regime de segregação acabou oficialmente, porém oficiosamente está vivo, e mesmo as conquistas sociais, como noutras partes do mundo são relativas demais. Não se muda preconceito com burocracia, ainda que gerada em lutas dignificantes como a de Mandela, mas o que este homem queria ficou apenas como um sonho. Parte de suas querenças estão sendo sepultadas no próximo dia 15/12/2013 com seu corpo e muitos dos seus ideais já estavam combalidos no seu caráter pragmático, porque ele sabia que tinha se tornado um ser meramente simbólico e sua morte e o que estão fazendo com seu velório comprovam isso.

É evidente, até nas imagens que recebemos em tempo real que os brancos não se misturam com os negros e isso significa que o preconceito e a segregação estão riscados nos espíritos e não eliminados, ainda que a Constituição e o bom senso indiquem que a união e a comunhão é que são úteis e belas. Mandela deixa eloquentemente um recado: faltam homens de bem mobilizados de fato para que o bem atinja a humanidade. Sobram negociantes que fazem da Política uma bolsa de valores comerciais que anula o conjunto de valores humanitários inerentes à dignidade de qualquer homem em qualquer lugar do mundo.

É claro que o legado político, social e histórico de Mandela já está sepultado há muito, porque a África do Sul está mergulhada em corrupção ativa, passiva, implícita e explícita e a moral humana anda baixa, inclusive, entre os descendentes, parentes e contra parentes de Mandela. A humanidade parece não querer se libertar das baixezas e das vilezas que sua trajetória acumulou nos últimos milênios. É como se a inteligência humana fosse um apêndice a serviço da maldade, da desigualdade, da falta de ética e de vergonha. Quer algo mais vergonhoso do que um descendente querer fazer um túmulo no lugar não preferido de mandela para explorar o local como ponto turístico? Quer algo mais penoso do que uma humanidade que se torna público alvo para visitas ao túmulo de alguém que foi devorado ideologicamente em vida? Este oráculo não se ilude, o planeta não merece muitos dos seus habitantes, a mente não merece tanto desperdício de inteligência.

O espetáculo midiático que se vê demonstra bem a nossa realidade. Estamos mal governados e mal representados de ponta a ponta do mundo. Neste sentido, Mandela de novo aponta para os modelos que possuímos e que precisam ser substituídos pela inteligência, pela coragem e por um novo humanismo, talvez um novo iluminismo, como defendeu Cristopher Hitchens. Temos de refundar a Democracia. É emblemático que todos ou quase todos os poderosos tenham por causa dele se reunido no Qu nu do planeta para escancarar uma realidade deprimente: o poder está vazio de decência e este vazio e esta indecência generaliza o pior: estamos sem saída.

Aqueles que deveriam pegar o bastão ético e seguir adiante rumo à decência humana no planeta, ao chegar ao poder se desviam. Os observadores, críticos e jornalistas em geral, caem na bandalheira de registrar a caricatura de um rito que deveria ser cerimonioso e apenas se torna carnavalesco, no sentido menos alegórico e vital da palavra.

Tanto na África do Sul quanto no restante do mundo há um perigo para o qual aparentemente não existe defesa: a Política e as instituições constituintes do poder estão abaladas pela fragilidade dos princípios humanitários e igualitários, porque vivemos a Ditadura Econômica e por causa desta, em nome desta, por tudo que esta espalha pelos bolsos e bolsas do mundo, a vida, a dignidade e a evolução do bem estão subestimados.

Vai ser enterrado um cara que lutou por uma causa que já deveria ter sido ultrapassada, desde que se concluiu inteligentemente que os negros são igualíssimos a todos nós. Se ainda, depois do massacre obtuso do holocausto, baseado numa absurda e pretensa diferença entre a raça judia e a ariana, houve necessidade de um Mandela para uma parte do mundo reconhecer que somos iguais e ponto, é porque há um mal a ser combatido que passou longe da História bela, mas incompreensível de Mandela: o mal humano de provocar o mal a partir dos poderes constituídos, defendendo conceitos e preconceitos que não abrangem o desejo de igualar a espécie em gênero, número e grau de decência presencial no planeta.

Se houve a primeira guerra mundial depois do Iluminismo ter defendido a igualdade, a fraternidade e a liberdade, se houve a segunda guerra mundial pelo capricho de um alemão ensandecido, respaldado por uma opinião pública cega; se depois de terríveis cenários, o mundo experimentou regimes totalitários, vergonhosos e brutais, é porque os humanos não pretendem de fato gerar e exercer os poderes políticos de uma forma digna e dignificante.

Se depois da dor e da lástima espalhadas pelos ditadores de todas as ideologias, novas guerras e novos terrores surgiram, se até mesmo os religiosos não defendem intransigentemente a paz e a honestidade, diante dos poderes que exercem, é porque a humanidade de fato não necessita de líderes, de heróis e de mitos como Mandela. A humanidade precisa de vergonha na cara, de coerência entre suas inclinações modelares do mal e sua inteligência capaz de poder modelar algo que mereça ser admirado em escala maior do que simplesmente endeusar alguém que foi derrotado ainda em vida. 

Basta que se note que duas grandes religiões são responsáveis por mortes diárias por pedaços de terra e por causa de doutrinações cristalizadas para se verificar que nem a ideia de um Deus consegue baixar a ignóbil tendência humana de gerar e sustentar o mal. Pior ainda é ver que pessoas do mundo inteiro repetem a parte quase saudável das doutrinas sem saber que estão contribuindo com a contradição religiosa. O oráculo deixou de ser religioso quando viu que uma frase sobre amor e paz de uma religião antiga jamais corresponde a atitude moderna dessa mesma doutrina. falta sensibilidade e inteligência até para recusar esse tipo de poder. 

Pelo assinalado anteriormente é que afirmo que Mandela foi derrotado em vida. Suas ideias estão longe de ser aceitas e praticadas. Esta é a verdade. Deixemos de nos iludir. A História recente do mundo escancara uma verdade horrenda: os homens aos quais confiamos os poderes constituídos nos traíram e colocaram no ostracismo aqueles que podiam fazer algo mais verdadeiro pela humanidade. Mandela é um dos últimos, senão o último a partir de um lugar inóspito, quase nojoso em termos de conduta, depois de ter lutado e oferecido sua vida em troca de alguma mudança.  

Para este oráculo, se a família de Mandela se fosse digna dele, o teria enterrado nos prados de Qunu, em silêncio e deixado Obama e sua trupe de protagonistas picaretas tirando fotos e rendendo números circenses para a grande mídia tola. Por essa e outras é que considero Mandela morto, desde que deixou a presidência da África do Sul. É por isso também que me considero órfão desde que me entendi por gente.

Que Mandela consiga enfim descansar em paz, enquanto a gente vai continuar por aqui se embatendo no Qu nu do universo.