Carta clara para Clara com o amor do tio

Bom dia, o Facebook me recorda de algo que escrevi há 4 anos para alguém que me chama de pãe. Ontem, durante a votação da guinada do país à Direita, quando nós todos perderemos direitos, uma menina que vi criança, brincando na areia da minha casa, ainda em construção, e que agora é moça, desabafava: é muito difícil quando até nossa mãe tem visão conservadora. Eu me compadeci da moça e lhe disse que é assim mesmo, que as pessoas pensam diferente, que elas têm opinião própria e que a gente precisa respeitar sem mudar as nossas convicções, caso estas sejam boas e limpas.
Pois é, é que ontem não estava em jogo apenas o mandato da senhora Dilma, como a moçada de 2013 dizia, que não eram apenas vinte centavos. Durante todo o processo de atiçamento ao impeachment eu tentei dizer aos meus leitores. Não é somente retirar senhora Dilma e execrar a vida e as pretensões de Lula, não é somente debandar o PT. É mais, é muito mais. É atacar nitidamente a corrupção, mesmo sabendo que não a dizimaremos, mas pelo menos, precisamos lhe impor limites.
Temos um sistema representativo viciado em propinas e atinge políticos do país todo, não é somente de Brasília. A luta, dizia eu, é também para não endeusar juízes, mas mostrar-lhes que queremos que eles atuem com a isenção e a imparcialidade que suas profissões requerem. É também verificar o que está em jogo, atrapalhando o jogo democrático, desde que redemocratizamos o país.
É ver e corrigir os erros de quem começou tudo isso. Eu dizia, é também verificar que FHC, o sociólogo, ao engalfinhar-se com o hoje DEM e parte do PMDB, nos enrascou, principalmente enrascou pessoas como eu e você, menina moça do desabafo de ontem. Quando pessoas libertárias e humanitárias se associam a gente que desrespeita diferenças, então a senhora Democracia está sendo cassada de alguma forma e não somente a senhora Dilma. FHC pôs essa gente com ele e seu partido, e por isso foi talvez o primeiro voto que perdi.
Disse aos meus leitores que é mais do que retirar Dilma. É ver que as pessoas que falam em Deus na Política, que falam que estão defendendo a família via política, que falam que estão defendendo o patrimônio do país em política, que falam que o país precisa crescer por causa disso e daquilo, são pessoas que nutrem e fomentam preconceitos, são pessoas que se rogam de Deus para perseguir minorias, são pessoas que também roubam, porque roubam dinheiro e surrupiam dignidades alheias.
É muito mais. O ato de apoiar ou rechaçar qualquer movimento dentro da Política. A senhora Democracia vem sendo cassada a murros, pontapés e cusparadas, desde muito. O próprio PT, Lula e Dona Dilma deram as costas aos grupos políticos que participam da luta pela inclusão e pela defesa dos mais fragilizados. Ao fazerem isso, pactuaram com o que há de pior na Política e estão pagando o preço.
Essa gente que não retira o nome de Deus da boca e que enche o peito para falar de honestidade e família é o que há de mais temeroso e fazer aliança com eles é pedir para ser traído, cedo ou tarde. Deu no que deu. Todos que roubaram antes estão soltos e o PT e sua gente estão desmoralizados e tendo que começar do zero. Mas, eu dizia, não é somente retirar senhora Dilma. É também reconfigurar a Democracia, contornar a Política em seus limites éticos e limpos. É abrir a sociedade para que todos tenham voz e vez.
Então, eu ouvia argumentos amedrontadores. Gente muito próxima desconsiderando o fato de que, ao apoiar o discurso de um Bolsonaro, por exemplo, está também me excluindo, me perseguindo, dificultando meu trânsito pelos direitos que mereço. Gente que, ao destratar Jean Wyllys, está retirando de mim, uma das poucas vozes que me defende, mesmo com suas contradições. Então o que estava e está em jogo é muito mais do que retirar a senhora Dilma.
O país tem 35 partidos, uma maçaroca de opiniões e os direitistas preconceituosos estão travestidos de bons em todas as agremiações, salvo exceções honrosas. Não se sabe direito quem é humanitariamente bom e quem é crápula, a não ser que entenda de Política. E quando eles misturam religião, família e honestidade no contexto contaminado para leituras demagogas, então a população, mesmo a mãe da gente, bela menina Clara, acredita neles e os defende. Por isso, não é somente retirar senhora Dilma, mas e, sobretudo, é zelar pela senhora Democracia.
Se hoje eu tivesse em mãos os resultados de uma eleição, em que, por exemplo, Bolsonaro tivesse sido eleito, eu saberia com quem lidaria no presente-futuro e respeitaria os resultados, mas saberia como lutar. Mas, não. Hoje eu tenho o resultado de uma vitória contra a Democracia e não contra a senhora Dilma, que saiu das cabeças e dos corações de políticos corruptos também, de políticos do baixo clero, comandados por um bandido, de políticos que trocaram apoios por cargos que o governo dos usurpadores lhes dará, mas principalmente, porque este resultado passou pelo crivo da bancada evangélica que me persegue e persegue a tantos como eu e que poda meus direitos constitucionais.
Por isso, não era e jamais será somente o impeachment. É também verificar que existe em marcha um retrocesso e a formação de um bloco conservador, envolvendo mentes e corações jovens, como um dos meus sobrinhos que odeia Jean Wyllys e apoia Bolsonaro. Este é que é o golpe e não outra coisa. Ao ouvir os meninos, líderes das manifestações, conseguem-se notar que são pessoas de mentes e corações comprometidos com a exclusão. Então não era e não é somente retirar Dilma, mas defender a senhora Democracia.
Depois vêm as justificativas, que primeiro retira a mulher, seu partido e aniquila Lula e depois partirão para cima dos demais corruptos. Pode até ser que sim, mas não conseguirão reverter essa onda de exclusão e de atraso que está no embrião da mudança que ajudam a fazer. A corrupção não vai acabar, mas, pelo menos, a conduta pública com relação aos temas tabus, os políticos sabem quando têm de manter.
Mas, não, a população que foi às ruas de amarelo, sequestrando a bandeira brasileira para seu lado, não enxerga isso, não percebe que a luta é outra, muito outra e que pode até ser que necessariamente passe pela retirada da senhora Dilma do Poder, mas urgente e responsavelmente teria de passar pela manutenção dos pilares democráticos que asseguram conquistas de direitos a todos, sem exceção.
Quanto à Economia, pois bem, a economia foi usada para frear toda e qualquer reação do governo e quem está por trás do freio é exatamente gente que pouco está ligando para o povo. Quanto à justiça, bem, o que vimos desde 2006 foi uma enxurrada de investigações, condenações e prisões, atingindo coincidentemente o núcleo governista e eximindo os demais cúmplices da banca de propinas. Então, não é somente retirar a senhora Dilma, mas lutar com clareza de propósitos para que a Democracia acolha, na sua proteção libertária, todos, com ênfase para os que não têm voz e vez, diante dos conservadores e puna todos os agentes que assaltam a bolsa da nação.
Não sendo assim, é golpe e é golpe sujo contra a justa medida que deve abranger os diferentes agentes do país. O que vemos agora, minha cara menina Clara, é um horizonte de mentiras e falsidades que começou a se desenhar na semana passada com a ação temerária de Temer e a partir de então viveremos de versões. Sem Temer, Sarney e Cunha, a votação de ontem seria favorável ao arquivamento do golpe. Teria sido melhor, porque os manifestantes iriam visualizar melhor o jogo.
Com o resultado, sabe mais o quê, os manifestantes vão se calar e os bandidos de sempre vão continuar fazendo e acontecendo, nos diversos núcleos de influências e os conservadores vão conseguir apoios para nos impedir de receber o que o país nos deve por direito constitucional, porque eles têm força para, inclusive, rasgarem a constituição.
Por fim, minha menina, sua mãe, como tantos amigos meus, a quem prezo e respeito, mal sabem do mal que estão nos fazendo com suas visões políticas equivocadas e nós, os oprimidos e excluídos, por motivos diversos, é que temos de compreendê-los. Eles não são maus, apenas não sabem o que estão fazendo apoiando este ou aquele movimento restritivo de direitos conquistados ou a conquistar.
Não é que não vai ter golpe. Vai ter golpe sim, querida, e nós sabemos quantas vezes, em diversas sessões dos plenários do país, em nome de Deus, da família, da moral e dos bons costumes, fomos golpeados por esse bando de estelionatários e ladrões da dignidade alheia.
O resultado de ontem é somente mais um, dentre muitos golpes que sofri, desde que me entendo por alguém em fase de crescimento como pessoa. E o que vai mudar na Política? Pouco. E o que precisa mudar no país? Muito. De forma, que para pessoas como nós, resta a luta, difícil, mas não temos outra saída mais honrosa. Talvez devamos começar limpando nossos corações em relação àqueles que nos amam e inconscientemente lutam contra nós, dentro da nossa própria casa ou nos ambiente que compartilhamos. O desafio é lutar, menina, não se esquecendo de ser feliz na simultaneidade, porque a vida não pode ser desperdiçada.