A voz do povo é a voz da barbárie

Um dos fatores mais fortes para o que está acontecendo no Brasil de agora vem das ruas, das pessoas que se consideram dignas e responsáveis. Estas pessoas, em determinado momento, compreenderam, se convenceram que acabar com o governo petista é a saída mais urgente que o país precisa.

Inicialmente, ainda esboçaram uma luta com a qual simpatizei: além da derrubada obcecada dos petistas, a luta era também contra a corrupção e a favor das reformas, há muito paradas, no Congresso Nacional.

Nas primeiras manifestações, as imaginei legítimas e, embora não tenha engrossado suas fileiras, as observava com atenção, porque acreditava ser mesmo algo apartidário e que pensava em alguma mudança profícua e com a força do povo, fundamental para fortalecer a Democracia.

Depois, fui vendo que se tratava, sobretudo, de eleitores tucanos, inconformados com a derrota. Isso foi ficando cada vez mais claro, passo a passo. Vamos aos fatos:

a)   Considere sem ódio preliminar que Aécio obteve 34.897.211 votos no primeiro turno. Dilma obteve 43.267.668 votos, Marina obteve 22.176.629 votos. Observe este número, porque será fundamental para entender a diferença entre impeachment e golpe.

b)   No segundo turno, Aécio obteve 51 milhões de votos, 16 milhões de votos a mais do que no primeiro turno, votos que migraram de Marina para Aécio. Dilma recebeu dos eleitores de Marina, 6 milhões de votos e os demais vieram dos partidos de Esquerda e de gente que não votaria em Aécio de jeito algum. Mas, não quer dizer que escolheriam Dilma, caso houvesse outra alternativa mais nobre.

c)    Naquela ocasião, portanto, estava claro que o país se dividira em preferência, com ligeira diferença para Dilma, mas uma diferença relativa. 5,4 pessoas em cada 10, votaram em Dilma, não quer dizer que gostasse dela ou do PT, mas que a preferiam exclusivamente em detrimento do adversário ser Aécio. Mas, 4,9 em cada 10 pessoas preferiam Aécio e preteriam Dilma, sob todos os ângulos. Dilma venceu as eleições, mas a preferência por ela não era límpida. Entretanto, ficou claro que Aécio não agradava à maioria, de forma inequívoca ou espontânea.

d)   Os tucanos e parte da sociedade viram que a classe média não votara em Dilma e que nos Estados ditos mais desenvolvidos Aécio tivera votação expressiva. Estava fácil arrebanhar pessoas para não deixar Dilma governar. Bastava manter os ataques de parte da mídia partidarizada e pronto. Quem compra Veja, istoÉ e assite ao Jornal da Globo?

e)    No paralelo, as investigações da Lava jato, na esteira do mensalão já havia seletivamente escolhido o PT como alvo. Tanto é que em todas as operações, apenas os citados do PT foram presos ou expostos midiaticamente. Os demais estão exatamente agora aprovando o impeachment de Dilma. Some-se a isso, a ação tendenciosa de todas as mídias, com atuação protaganizadora do juiz Moro.

f)     Mas, o termômetro do impeachment eram os eleitores de Aécio, principalmente no eixo sul/oeste/sudeste, e nas capitais, onde o aglomerado de pessoas nas manifestações causaram mais estragos ao governo, dando visibilidade de milhões contra Dilma, PT e Lula. Mas quem são eles? O povo, unido e exigente de um país mais digno e melhor ou a massa de eleitores tucanos insatisfeitos exclusivamente com a derrota e gozando com as denúncias seletivas de Moro, algumas ainda não provadas? Isso não inocenta Lula e PT e também não exime Dilma de nada, mas demonstra que o resultado das eleições não foi respeitado e foi violado explicitamente por gente de interesses escusos.

g)   Foi fácil contabilizar 6,5 pessoas em cada 10 favoráveis ao impeachment, porque parte dos eleitores de Marina que votara em Dilma para não votar em Aécio, apenas começou a se expressar contra Dilma e não a favor a Aécio. O cenário do impeachment se circunscreveu exatamente por uma aparente vontade do povo, mas na verdade, no geral, ainda é o eleitorado tucano, ajudado pelas forças midiáticas e judiciárias, querendo turnos e mais turnos da eleição de 2014. O número de eleitores contários ao governo Dilma totaliza aproximadamente os números do primeiro turno e não do segundo. Porém, essa gente foi às urnas, por livre e espontânea vontade, cumprir as regras democráticas do voto. Alguns, a grande maioria favorável ao impeachment não enxerga isso e então pensa que está fazendo o melhor para o país, mas está apenas satisfazendo os desejos iniciais e permanentes de Aécio, depois engrossados pelos desejos aterradores, imorais e nojosos de Temer, Cunha e sua tropa de choques para golpes baixíssimos contra a Democracia. Não é contra Dilma, cara pálida, mas contra a Democracia. E retirando Dilma, não se está combatendo nada, porque a corrupção está ficando. Então, prevalece a lógica do ódio tucano contra os petistas. O país não merece essa polarização idiota.

h)   Depois, claramente, as manifestações foram virando partidaristas. Não eram mais a corrupção, as reformas, a dignidade da nação que os faziam bater panelas nas sacadas, mas a vontade virulenta de tirar Dilma do poder, aniquilar o PT e prender Lula.

i)      Não entro no mérito se merecem ou não. O importante é perceber que a Democracia está sendo vítima dos derrotados nas urnas, os setores acostumados a ganhar sempre com a Economia instaurada pelo Governo, grupos políticos que veem na derrubada de Dilma, pontes para as eleições de 2016 e de 2018, além é claro, dos equivocados, marias-vão-com-as-outras que ouviram o galo cantar e não sabem aonde.

j)      O ódio estampado nos posts das redes sociais, em alguns programas de televisão, nos comentários de jornalistas torpes de certa revista, na intransigência de pessoas inteligentes que se recusam a mudar de opinião tem base exatamente no partidarismo e não na cidadania. Está claro que os tucanos não aceitaram a derrota e impetraram vingança, ao custo dos prejuízos que o país está tendo, é claro somados à incompetência dilmista.

k)   No final, o impeachment será aprovado, para a desonra dos políticos brasileiros, algo, a meu ver, muito mais grave do que a corrupção, porque esta sai ilesa do espetáculo e a Democracia sai ferida, nos seus principais fundamentos e com o aval de 6,5 pessoas a cada 10, estas que não se importam com a regra básica dos sistemas democráticos. Não cabe aqui se Dilma é ou não é culpada. Cabe o fato de que, não fossem os golpes baixos dos bastidores politiqueiros, qualquer outro que estivesse no seu lugar se safaria e as manifestações sequer teriam ocorrido.

l)      Foi a combinação de jogadas sujas, baixas e sórdidas que nos trouxe até aqui e essa mancha na Democracia vai demorar décadas para ser apagada.

m)Eu tentei conversar com os meus amigos, mas ninguém quis ou quer me ouvir. Há uma cegueira tremenda e mesmo agora que os panos sujos caíram e os reais interessados na saída de Dilma surgiram, todos com fichas deploráveis, os manifestantes, muitos dos quais meus amigos, estão insistindo, como se de fato tivessem estado sempre certos. E não estiveram e não estão certos. Estão dando oportunidade para a maioria dos citados na Lava Jato se livrar.

n)   Duvido que os manifestantes irão às sacadas bater panelas contra o discurso de Temer. Se forem, no outro dia, irei com eles para as ruas. Mas não baterão. Não se importarão que Cunha, mais tarde, derrube Temer e se torne presidente. Não se importarão, porque não pensaram no país, mas apenas na derrota de 2014 e o grande vilão dessa história é Aécio, auxiliado pelo tucanato rasteiro, representado por pessoas como Serra, Aloysio Nunes e outras figuras tão nojentas que evito grafar seus nomes. Se existe quem vá as ruas contra essa corja, é exatamente quem votou em Dilma. Que paradoxo, não é?

o)   No final das contas, se parar o Brasil para os lúcidos descerem, descerão três em cada dez pessoas. Não sobrará ninguém para reaver a dignidade da nação.

p)      Vejo, sem exagero, este período como o mais amedrontador da História do país, porque é um tempo em que até a voz do povo se desmoralizou, porque qualquer manifestação que chame para si a vingança e não o bem real do país é indigna e passará para a História como a grande avalista de atrocidades contra a democracia. Resisto a citar o nazismo.
Segunda feira começa a República dos Canalhas e eu recomeçarei a luta para reconstruir o que parte do povo, entre os quais muitos amigos, ajudou a destruir. Sem mágoas e sem rancores, eu os perdoo pelo enorme retrocesso que estão me fazendo viver. Aos 60 anos, ainda terei forças para ajudar na reconstrução. É o que me resta. Quanto aos manifestantes, não sei se mais tarde poderão falar do assunto com certa honradez. Sinto vergonha disso tudo e me sinto devastado por descobrir, depois de anos, que a voz do povo é a voz da barbárie.