Aborto, pena de morte e vida – Antes que você tome partido.

Homem falar de aborto é algo meio estranho. Peço licença às mulheres para falar um pouco a respeito. Como o Congresso brasileiro é maciçamente masculino, qualquer decisão que venha dali precisa de muito cuidado antes de se cravar apoio ou repúdio. A segunda área que fala do assunto é a religião. O cristianismo, católico ou evangélico, é também tocado por homens, o que, em tese, coloca o tema sob a suspeição. Somente as mulheres têm propriedade para falar do assunto, porque os fatos dizem respeito ao seu corpo, ao seu senso de maternidade e à sua responsabilidade de doadora e mantenedora da vida. O assunto é muito mais profundo do que aparenta e é um desrespeito com as mulheres quando tratam disso como assunto de barganha política eleitoreira.

São tantas as variantes que cabem no tema, que um artigo curto não o cobre, um livro talvez não esgote as perspectivas. Cito aqui apenas alguns dilemas, a saber:

1)      Os abortos espontâneos são pouco lembrados quando se falam dessa temática e são os que causam grandes avarias emocionais e psicológicas, sobretudo, naquelas mulheres que ainda não são mães ou que já são e desejam aumentar a prole. Este tipo de aborto é tão difícil de ser tratado, porque não é somente algo físico e seus desdobramentos vão além de cuidados médicos e traz sintomas que transbordam na família, nos amigos e nos próximos passos daquela que viu o sonho voltar do caminho.

2)      Os abortos não espontâneos possuem outra dinâmica e cada caso é um caso. A generalização é prejudicial ao debate, porque dimensiona os aspectos conservadores e liberais, como se um dos lados tivesse solução. Nenhum dos lados sabe como resolver. Vejamos alguns tipos de motivações para abortos não espontâneos:

a)      Gravidez provocada por estupro. Uns acham que deve ser interrompida, outros acham que não. Somente a mulher que é a protagonista atingida em cheio pelo fato teria condições de decidir. Caso haja uma lei dizendo que ela tem de ter o filho, mesmo contra sua natureza violentada, é uma lei injusta, ainda que fosse uma lei divina, porque a obrigaria a carregar pelo restante da vida, o símbolo, em termos de um ultraje intransferível, talvez inapagável. Neste caso, a liberação seria mais coerente, isto se for retirado o viés religioso que, em tese, não é tão sagrado, quanto à natureza daquela que sofreu a violência. É uma crueldade masculina e religiosa quere ultrapassar a linha abstrata do sofrimento alheio.

b)      Gravidez indesejada por descuido ou a chamada gravidez precoce, em que os pais ou a mãe não tem a mínima noção da gravidade do ato. Talvez este seja o mais plural e numeroso dos motivos, porque engloba, desde a não prevenção pelos métodos contraceptivos, passando pelo uso dos preservativos, até as condições financeiras e sociais da mãe ou dos pais. O problema aqui é terrível, porque as religiões e os conservadores são literalmente contra ao aborto e querem criar leis impeditivas. Entendem-se as motivações e os argumentos destes grupos, mas as leis, em todo o mundo, são burladas e as clínicas ilegais acabam recebendo milhões de mulheres e ou casais que as contratam e praticam o aborto clandestinamente. Conclui-se que criminalizar o aborto põe mais vidas em risco e quem é contra não é um herege e sim, alguém que visualiza o problema como realmente é e não com a lente dogmática.

c)       Gravidez em que há risco de morte da mãe e por isso o aborto é a única saída. Há quase um consenso a respeito de que deva ser autorizado.

3)      O assunto é complexo. Se de um lado é dito que o feto já é uma vida e retirá-lo é um crime. Do outro, a criminalização não resolve o dilema, porque os abortos são feitos ilegalmente, pondo em risco mais graves, a vida já existente da mãe. A conscientização é dificílima, porque a maioria das mulheres que abortam ilegalmente tem motivações múltiplas e o Estado não consegue abranger as soluções porque parece não existirem.

4)      Ainda existem os abortos cometidos pelos homens que quando sabem que a parceira engravidou, somem, renunciando à vida que ajudou a gerar.

 

Para falar de aborto tem-se de falar de pena de morte e de vida. Proibir o aborto é como proibir assassinatos. Não vai diminuir ou evitar. Vão continuar ocorrendo em escalas semelhantes, com a agravante de outras vidas, desta feita, às das mães serem retiradas pela falta de condições ideais para o aborto ocorrer. O bom era a conscientização, mas está longe de ocorrer.

 

O problema por outro tipo de conscientização: a dos políticos corruptos que tinham de ver que são responsáveis indiretamente, não somente por boa parte dos abortos, mas pela mortalidade infantil que é muito mais aterradora do que o aborto. Ao roubarem deixam de preparar o acolhimento dos recém-nascidos. Estes crescem marginalizados dos bens básicos lhes devidos pelo Estado. Muitos se tornam marginais e aí os políticos corruptos, os religiosos negociadores de dízimos e os conservadores querem diminuir a maioridade, porque bandido bom é bandido morto. Pode até ser que muitos marginais sejam mesmo cruéis e mereçam punições exemplares, mas é preciso que os atores políticos, religiosos e sociais façam a “mea culpa” e assumam que se os serviços básicos, como pela ordem, saúde, moradia, educação e segurança não fossem assaltados. De alguma forma pelo Estado, provavelmente o número de marginais seria bem menor.

 

Querer preservar a vida dos fetos é uma atitude interessante, guardadas as motivações relacionadas acima, mas entregar os bebês à sorte de um Estado falido, nos serviços básicos retira da sociedade o direito de querer impor pena de morte e prisão perpétua, salvo em casos absolutamente bárbaros. Outra coisa estranha é armar as pessoas para combater o crime. O combate ao crime está no bojo do acolhimento dos bebês e do seu encaminhamento à vida em sociedade. Este tudo misturado e os maiores bandidos não são os que se armam e assaltam, mas os que roubam os cofres públicos impedindo que os serviços preventivos ocorram na primeira e segunda infância.

 

Por essa razão, o discurso conservador e autoritário é muito perigoso e parcial, porque esquece, inclusive, que vida é vida, em estado de feto e, sobretudo, já formada. Então, o estado teria de se ocupar da recuperação dos marginais e não da aniquilação deles, pois, se não muda o acolhimento, desde o ventre, podem-se matar todos os bandidos de um lugar, mas outros surgirão, porque a causa não foi modificada.

 

Abraçar ideias como as de certo candidato revela o desconhecimento dos seus eleitores em analisar as situações de maneira ampla e isenta. Seja pela fé, seja pela cultura conservadora, seja por convicções políticas, para falar de aborto tem-se de considerar valiosas todas as vidas: as que estão em formação, as que estão se aprontando na primeira e segunda infância, as que já se desviaram, por falta das observâncias preliminares e as que precisam de regeneração e não encontram meios, porque o sistema prisional está sucateado, novamente pelos corruptos contumazes, eles, os que agora pedem votos dizendo que vão resolver os problemas, mas na verdade querendo apenas poder para roubar mais.

 

Aborto, pena de morte, prisão perpétua, armamento para enfrentamentos individuais, entre outras soluções violentas precisam passar pelo crivo das causas e efeitos, sendo que as causas estão sempre relacionadas à incompetência do Estado que é dilapidado pelo poder político. Enquanto isso, os religiosos inescrupulosos que ajudam a empobrecer os crentes, explorando dízimos indevidos, falam do assunto ignorando a complexidade, desconsiderando a liberdade de escolha das pessoas e pondo as pessoas em confronto com sua fé e com seus dilemas de rotina. Quão mais torturante é decidir abortar ou ver um filho condenado à morte para um crente? Falta humanidade nos líderes religiosos e essa a maior pobreza de uma nação.

 

A solução seria a Fraternidade como sistema de Governo, a Cultura de Complementaridade como ética existencial e a decência presencial em movimento atuante em toda pessoa. Como está muito longe, discutir política e apoiar ideias inconclusas geram tão somente conflitos e disputas inócuas e inválidas.

 De qualquer forma, para os que defendem a vida do feto, é necessário defender a vida em todos os níveis, porque a vida que há no feto não pode ser mais valorizada do que a vida que há no adulto. Assim como não se quer matar o feto, seja em que circunstância, tem-se de preservar a vida, seja em que aspecto. Difícil, e por isso, ser a favor ou contra simplesmente, sem pensar direito, pode ser uma afronta à vida e à liberdade das pessoas.